Naquele
final de noite fez-se de fato uma reunião com o intuito de selar a
paz entre nós. A reunião foi iniciada por Marcela e ao final ficou
decidido que não haveria mais discórdia entre as meninas, embora
pude perceber no olhar de Luciana, o qual me era dirigido
constantemente, que na primeira oportunidade ela romperia o acordo.
Ficou decidido também que, devido a pouca possibilidade de sermos
resgatados nos próximos dias (ainda não se falava abertamente no
fim das buscas), faríamos uma boa melhora na cabana, tornando-a mais
aconchegante a habitável, já que esta seria por um bom tempo o
nosso lar. Todos, inclusive Luciana, que ainda não havia melhorado
totalmente do pé, teria de ajudar. Não haveria privilégios e
exceções. E por último, ficou decidido que vasculharíamos a ilha
a fim de encontrar pedaços de metal para que usássemos como
ferramentas ou que pudessem ser usado para fabricá-las; aliás, essa
proposta partiu de Marcela em seguida a decisão de melhorar a
cabana, quando indaguei como faríamos para cortar madeira para
construir os alicerces, no que Marcela propôs encontrarmos pedaços
de metal e derretê-lo. Lembro-me inclusive de suas palavras:
--
Claro que metais são pesados e afundam. Portanto eles não iam
chegar aqui, mas algum pedaço preso à madeira ou a um pedaço de
barco ou até mesmo deixado aqui por alguém. A gente já sabe que
essa ilha já foi visitada. Pregos velhos e enferrujados. Devem ter
alguns poi ai, enferrujados, mas mesmo assim servem.
E
de fato ela estava com a razão. Foram encontrados por minha prima
pouco mais de meia dúzia deles pregados numa tabua que a maré deva
ter trago há alguns anos. Marcela achou um pedaço de chapa presa a
um pedaço de pau, provavelmente destroços de um barco pesqueiro que
naufragara ali perto. E nos dias seguintes, mais pregos, parafusos e
mais um pedaço de metal medindo cerca de dez centímetros quadrados
foram achados. Aliás, este último foi fruto de um golpe de sorte,
uma vez que só pode ser encontrado porque Ana Paula estaca cavando a
areia para fazer um castelo quando deparou com algo duro. E, ao cavar
para ver do que se tratava, descobriu-se o pedaço de ferro.
Recolhemos
tudo que achamos naqueles dois dias e então tornamos a nos reunir
para decidir o que fazer. Eu não fazia a menor ideia de como
derretê-los, pois sabia que aquele fogo brando da fogueira, a qual
mantínhamos acesa desde a chegada à ilha, não serviria para nada.
Luciana e Ana Paula chegaram inclusive a dizer que não seria
possível derretê-los. Marcela por outro lado insistiu que se
fizéssemos uma fogueira maior talvez desse certo, pois quanto maior
a fogueira maior o calor. Isso inclusive gerou um princípio de
discussão entre ela e Luciana, onde tive de intervir, relembrando-as
da promessa feita há dois dias no sentido criar desavenças.
Os
ânimos se acalmaram, mas era evidente que não por muito tempo.
Luciana, possivelmente tomada pelo ciume, não suportava a outra. Uma
nova briga era questão de tempo. Uma discordância ou uma palavra
mais ríspida por parte de Marcela certamente levaria Luciana a
iniciar um bate boca e quiça partir para a agressão, ainda mais
agora que estava boa do pé e ela já conseguia andar embora se
forcá-lo muito.
De
fato Luciana e Ana Paula estavam com a razão. Levei ao fogo os
pregos sobre a chapa de metal e deixei-os por mais de meia hora e não
derreteram, mesmo colocando mais madeira a fim de aumentar o fogo e o
calor. Realmente o calor aumentou, tanto que não conseguimos ficar
tão próximos da fogueira como ficávamos antes, mas não deu
resultado. Houve inclusive o temor de que o fogo pudesse atingir os
pedaços de madeira que sustentavam a cabana. Assim, tanto os pregos
quanto os dois pedaços de ferro foram deixados do lado de fora da
cabana até o dia seguinte, na esperança de que encontrássemos uma
utilidade para eles. Aliás, naquela noite mesmo, após aquela
tentativa fracassada de derretê-los, Marcela sugeriu tentarmos
novamente no dia seguinte, mas agora construindo com pedras uma
espécie de fornalha e, ao invés de usarmos gravetos como vínhamos
fazendo, usarmos pedaços mais grossos de árvore. A questão era que
não havia como cortarmos as árvores.
--
Por que a gente não tenta amolar esse pedaço de ferro maior? É só
você ir esfregando uma pedra dum lado dele que ele vai amolar.
Depois a gente tenta usar ele para cortar um pedaço de árvore mais
grosso – propôs Luciana. -- Eu te ajudo a cortar.
--
Podemos tentar – respondi.
E
assim foi feito. Levei um dia e meio para conseguir afinar um dos
lados da chapa de ferro, já que a mesma possuía cerca de um
centímetro de espessura. Quando dei o serviço por terminado, jazia
com as mãos machucadas e com os braços doloridos. E para compensar
o meu esforço, houve uma salva de palmas, um parabéns para você e
finalmente as três decidiram que eu ficaria na cabana descansando
enquanto elas iriam em busca de algo para comermos, uma vez que
naquele dia eu ainda não tinha ido pescar apesar de que tencionava
fazê-lo mais tarde, antes de anoitecer. Aproveitei para tirar uma
soneca, já que estava sozinho.
Acordei
com o riso das três. Vinham alegremente em direção a cabana. Não
consegui entender o que diziam, mas o fato de estarem sorrindo me
tranquilizou, pois quando saíram temi que pudessem desentender-se e
voltarem sem se falarem. Lembro-me inclusive de pensar: “É tão
bom ver elas assim. Quem sabe Luciana pára de implicar com elas e
larga até do meu pé. Ela sabe que num sinto nada por ela e que
gosto mesmo é da Marcela. Talvez ela esqueça de vez aquela história
de que sou seu maridinho
e de que tenho que fazer um filho nela. Ela nem tentou me agarrar
esses dias e nem me obrigou a meter com ela. É. Ela deve ter parado
com isso. Viu que estava fazendo coisa errada, que Deus ia castigar
ela. Ela disse que não acredita em Deus. Mas deve ter dito isso só
da boca para fora. Como pode uma pessoa não acreditar em Deus? É
até pecado pensar numa coisa dessas...”.
--
Olha o que achamos – disse minha prima, mostrando-me dois ovos,
menores do que ovos de galinha. -- Ovos!
--
Onde vocês acharam isso? -- apressei em perguntar. Imediatamente
levantei e fui pegá-los.
--
Lá em cima, no cume da ilha, perto de onde fomos outro dia –
explicou Lucina. -- Subimos as três lá em cima. E não achamos só
isso não. Olha aqui: -- estendeu o braço e aproximou a mão onde se
encontrava três goiabas grandes e bem maduras. -- A gente trouxe
essas aqui para você. É um presente.
Apanhei
uma das goiabas e, antes de levá-la à boca, falei:
--
Mas e pra vocês?
--
A gente já comeu lá no pé mesmo. Eu comi quatro, a Marcela três e
a Luciana também comeu quatro – disse minha prima. -- E tem mais
lá, mas como estavam verdes, a gente resolveu deixar para ir buscar
depois.
--
Vocês não deveriam ficar se enfiando nessa mata. É perigoso! --
falei.
--
Perigoso por quê? -- insistiu Luciana. -- Não vai me dizer que é
por causa daquela história de que você andou ouvindo sons estranhos
vindo de lá. Já te falei: mil vezes que isso é coisa da tua
cabeça. Não tem nada ali. A gente andou a mata quase toda e não
vimos o menor sinal de qualquer animal. Não tem pegadas, não tem
nada. Portanto, não tem bicho nenhum.
--
Mas eu ouvi – insisti. -- Eu senti que tinha alguma coisa
observando a gente.
--
Deve ter sido o vento que te deu essa sensação – disse Marcela,
um tanto tímida e agachada num canto. -- Realmente não vimos nada.
Vencido,
acabei aceitando. No entanto, não me convenci. Aliás, ninguém me
convenceria do contrário, nem mesmo as mais contundentes provas. Eu
podia estar errado e completamente equivocado, mas eu era tão
somente um garoto de treze anos, e nessa idade ainda damos muito
crédito à nossa imaginação, como se ela fosse tão somente uma
extensão da realidade. Não havia amadurecido o
bastante para distinguir o real do imaginário, ainda mais se
levarmos em conta que, como acontece com muitas crianças, os pais,
ao invés de educá-los de forma que essa separação fique bem
clara, acabam por usar esta falta de discernimento para distorcer
ainda mais a realidade, incutindo um medo que na maioria dos casos
acaba afetando a criança para o resto da vida.
Olhei
discretamente para ela e notei algo errado. “Será que ela e
Luciana andaram brigando? Será que ela descobriu alguma coisa ente
eu e ela? Não. A Luciana num ia contar. Pode ter sido outra coisa?
Mas o quê? Perguntar. É melhor não. Quando a gente tiver sozinho
eu pergunto”, pensei. Embora aquilo ficou me encucando na cabeça,
provocando-me uma curiosidade difícil de ocultar, não toquei no
assunto. Preferi esperar.
Comi
duas goiabas apenas. Não que a outra não coubesse, eu apenas achei
que poderia guardá-la para mais tarde ou para o dia seguinte. Nesses
ínterim, foi levantada a questão de como cozinhar os ovos. Mais uma
vez quem propôs a melhor solução foi Marcela: encher duas cascas
de coco com água, colocar um ovo em cada e colocá-la na fogueira.
Assim a água ferveria e cozinharia os ovos.
--
É assim mesmo que se cozinha ovos – explicou Luciana, numa das
raras vezes em que concordou com Marcela.
Quando
Ana Paula se levantou para buscar água para cozinhá-los, ofereci-me
para acompanhá-la. As sós com minha prima, poderia indagá-la.
--
A Marcela parece estranha. Aconteceu alguma coisa entre vocês?
--
Não – respondeu Ana Paula. -- É que ela tá menstruada. E como
ela num tem absorvente e aquela parte do biquíni só tampa um pouco
na frente e atrás, embaixo fica sem nada e como ela tá menstruada,
vai ficar escorrendo pelas pernas dela. -- explicou.
Fiquei
surpreso. Em nenhum momento me passou pela cabeça que as meninas
teriam de enfrentar esse problema.
--
Menstruada é quando a mulher tá naqueles dias? -- Eu já tinha
aprendido alguma coisa sobre a menstruação, mas ainda sim não
sabia do que se tratava com exatidão, dai a pergunta.
--
É isso mesmo!
--
E agora?
--
A Luciana disse que num dá pra fazer nada. Ela vai ter que ficar se
lavando quando começar escorrer – disse Ana Paula.
--
E quanto tempo ela vai ficar assim?
--
Num sei. Uns três ou quatro dias. Ela disse que no mês passado
ficou três, mas a Luciana disse que costuma ficar quatro. Então num
sei.
--
Tudo isso? -- perguntei com espanto. Nisso ocorreu-me que também eu
teria de conviver com aquela situação. Isso muito provavelmente
alteraria a nossa rotina, uma vez que Marcela teria que se lavar
muitas vezes ao dia. -- E você?
--
Eu? Ainda num fiquei. Sou nova ainda. Ainda não virei mocinha.
Enchemos
os dois potes com água doce e retornamos. No trajeto de volta
interroguei minha prima acerca daquela novidade. Algumas perguntas
ela não soube responder; outras ela respondeu de forma
insatisfatória, uma vez que, como ela mesmo afirmou, era muito nova
para saber sobre essas coisas. Talvez se não estivéssemos chegando
na cabana teria feito-lhe mais perguntas.
Após
cozidos e deixados esfriar por alguns instantes, foram descascados e
partidos ao meio, onde cada um saboreou lentamente a sua metade. Isso
nos fez lembrar de nossa casa, da deliciosa comida que nossas mães
preparavam. Cada um falou de seu prato preferido e de como este nos
fazia falta. Um ar de saudade e tristeza se abateu todos nós,
levando-nos ao mais completo silêncio; silêncio esse que só foi
quebrado para dizer que deveríamos dormir para, no outro, dia
tentarmos cortar algumas árvores para então construir uma casa de
verdade.