domingo, 16 de outubro de 2011

ADEUS À INOCÊNCIA - CAP. 21

Alcancei-a facilmente na faixa de areia. Embora Luciana fosse mais velha e maior do que eu, tratava-se duma mulher. E as mulheres não são tão velozes quanto os homens. Ainda mais que eu era um ótimo corredor e Luciana aquele tipo de pessoa que, ao correr, o faz de forma desengonçada. Na escola, nenhum aluno da minha série corria tanto quanto eu. Nas aulas de educação física, quando o professor mandava a gente dar dez voltas ao redor da praça, eu era o primeiro a terminar. Aliás, somente um garoto da oitava série conseguia me bater de vez em quando. Muitas vezes porém, usando de todo o meu esforço, eu conseguia terminar na frente dele. E eu sentia o maior prazer em vencê-lo. Era como se acabara de ganhar um importante troféu. Aliás, os fracos dão um valor infinitamente maior às pequenas vitórias do que os fortes, talvez porque no fundo sabem que nunca deixarão de ser um quase nada e a grandeza é algo tão inalcançável quanto o pleno conhecimento de tudo.
Agarrei-a pelo braço e ela perdeu o equilíbrio. Ao cair na areia fofa, puxou-me e eu tombei por cima ela. Suas gargalhadas se tornaram ainda mais altas, demonstrando um profundo deleite. E aquilo acabou me irritando, pois eu não sentia prazer algum naquele brincadeira. Aí, num gesto inesperado e pegando-me desprevenido, empurrou-me para o lado e rolou sobre mim.
A areia, presa em seus cabelos, acabou caiu em meu rosto e atingindo-me os olhos, fazendo com que me distraísse e fosse imobilizado pelas mãos ágeis de Luciana. Dominado e sem ter como reagir, tornei-me presa fácil. Luciana prendeu meus braços contra a areia e sentou sobre os meus quadris, tirando-me qualquer chance de escapar.
Eu bem que tentei, mas foi em vão. Ela parecia querer me dominar e mostrar que era superior e tinha total poder sobre mim. Nos seus olhos e nos lábios via-se um quê de prazer muito além daquele experimentado por um garoto ao dominar o adversário numa brincadeira. Havia algo por trás daquela mente que eu ainda não compreendia, mas ela me faria descobrir muito em breve.
-- Ta vendo como você é um frouxo? – disse ela, rindo da minha cara.
-- Já falei! Não sou frouxo! – exclamei, esforçando-me ao máximo para escapar e sair debaixo dela.
Fui obrigado a desistir. Estava exausto, com a respiração ofegante e sem forças. Nos olhos dela o prazer do domínio só se fazia crescer. Dir-se-ia sentir uma espécie de júbilo, algo a se aproximar do êxtase.
-- Ai! Você está me apertando – falei. – Vai. Me deixa sair – pedi em seguida.
-- Por quê? Você não consegue se escapar, seu fracote?
-- Não, eu não consigo – admiti com os olhos pregados nos dela. Ela me encarava sorrindo. – Vai! Me solta! – pedi mais uma vez. – Assim você está me machucando – afirmei depois de uma pausa.
Pelo jeito ela não acreditou, pois não me soltou; pelo contrário, apertou ainda mais meus punhos contra a areia fofa. Parecia não só demonstrar sua força quanto me convencer de uma vez por todas que podia fazer o que bem entendesse comigo.
-- E se eu não quiser te soltar? – quis ela saber.
Eu não respondi. Aliás, eu nem sabia o que responder; no entanto, implorei:
-- É sério! Por favor, me solta!
Fez-se silêncio por alguns momentos. Luciana parecia pensar, como se estivesse decidindo se me soltava ou se deixava a coisa correr por mais algum tempo para ver o que aconteceria. Mas pouco depois, fez uma proposta:
-- Eu te solto se você me der um beijo. Mas tem que ser um beijo de língua.
Fiquei sem reação. Eu naquele momento não estava com vontade de beijar nem ela nem ninguém. Aliás, eu só queria que ela me soltasse. Eu não tinha desejo ou qualquer outro tipo de sentimentos por ela. Era como se ela fosse um garoto como eu, e não uma menina com os seios desnudos. Beijá-la ali seria como beijar um amigo. Ainda mais da forma que ela queria. Eu nem sabia direito o que era um beijo de língua. Fazia apenas uma vaga ideia. E só de pensar minha língua na boca dela me causava nojo. Inclusive, essa expressão de nojo deve ter sido notada por ela, embora não tenho dito nada. Mas eu não tinha alternativa. Se não concordasse, ela não me soltaria; e, ao contrário do que ela poderia estar pensando, realmente estava me machucando com todo o seu peso prendendo os meus pulsos. De mais a mais ela não me parecia o tipo de pessoa que desiste fácil. Só me soltaria depois de alcançar seus objetivos.
Assim, sem ter muito que fazer, acabei concordando.
Então ela aliviou a pressão, soltou-me os braços, apoiou-se na areia e foi aproximando seu rosto do meu. Nossos lábios se tocaram e eu senti a língua dela entrar na minha boca. Nisso, seu corpo apoiou no meu, como se ela deitasse em cima de mim, e suas pernas se enroscaram nas minhas.
Como por instinto, meus braços a enlaçaram pelo pescoço e o beijo continuou. Beijávamos feito um casal de namorados, embora de minha parte faltasse o elemento principal que leva duas pessoas a se entregarem de forma tão profunda. Era um beijo completo. A sensação de nojo aos poucos se dissipou e então minha língua acabou procurando a dela de forma instintivamente. Imediatamente algum dispositivo dentro em mim foi acionado e fez com que meu corpo reagisse. Eu não sabia como conter aquilo, ainda mais ao experimentar o prazer em beijá-la, em sentir seu peso em cima de mim, os seus seios roçando nos meus peitos e suas pernas enroscadas às minhas. O deleite que Luciana experimentava pôs de lado toda a minha indiferença.
-- O que vocês estão fazendo? – perguntou Ana Paula quase ao nosso lado.
    A surpresa foi tamanha que Luciana deu um impulso e se levantou de imediato. Paralisado, encarei minha prima e não consegui soltar som algum. Era como se a voz estivesse presa e algo a impedisse de sair. Aliás, amigo leitor, é nessas horas que se distingui os fortes dos fracos. O fraco simplesmente se encolhe e amedrontado não reage, não tenta escapar nem mesmo da morte. Deixa que ela o abocanhe passivamente. Por outro lado, o forte esboça algum tipo de reação. E por mais absurda e irracional que seja, ele simplesmente procura não demonstrar passividade e medo. E mesmo diante da morte, sabendo que não poderá escapar, ainda sim a encara com dignidade e luta até o fim.
    -- Nada – foi o que Luciana respondeu de forma ríspida.
    -- Nada? Como nada? Eu vi vocês se beijando – afirmou ela.
    Nisso, eu também me levantei. Ana Paula olhou para minha cara com expressão de ódio e disse:
    -- Eu não acredito que você estava beijado essa cadela.
    -- Cadela é você, sua pirralha! – exclamou Luciana, ameaçando partir para cima da outra.
    -- Espera aí! Não vão se pegar agora – pedi, pondo-me entre as duas que se olhavam como se preparassem para o combate. E antes que alguma delas dissesse algo, adiantei-me: -- Ana Paula, pede desculpas a Luciana. Você não pode simplesmente ir chamando os outros de cadela – expliquei. Aliás, era a coisa certa a fazer. Por mais que se odiassem, por mais que Luciana tivesse feito algo de errado,  ninguém tinha direito de ofendê-la daquela forma.
    -- Eu não vou pedir desculpas coisa nenhuma – asseverou minha prima. – Ela é uma cadela e pronto! Eu vou contar para a Marcela o que você estava fazendo Você diz que gosta dela e estava beijando essa cadela – Fazia questão de frisar bem a palavra cadela. E antes que eu pudesse dizer alguma coisa, saiu correndo.
    Ameacei correr atrás dela, mas Luciana me segurou pelo braço e depois disse:
    -- Deixa elas. Elas se merecem. Depois você conversa com ela. Agora ela não vai te ouvir mesmo!
    Concordei. Luciana estava com a razão. Ana Paula não ia ouvir minhas explicações. Quando se está enfurecido, possuído pelo demônio da desrazão o melhor a fazer é esperar que a cabeça esfrie para então poder ouvir o que se tem a dizer e ponderar as justificativas.
    Por uns momentos, fez-se silêncio. Tanto eu quanto Luciana permanecíamos de cabeça baixa, como se estivéssemos com vergonha um do outro e procurássemos algo para dizer. No meu caso porém era a vergonha e o temor. Se não bastasse a vergonha de ser surpreendido por Ana Paula, ainda havia o medo de que realmente Ana Paula contasse tudo para Marcela. E se o fizesse, Marcela também  ficaria com raiva de mim e de Luciana; ainda mais se realmente ela estivesse interessada em mim, como eu tinha ouvido as duas conversarem na noite anterior. “Ah, mas se ela disser alguma coisa só para fazer a Marcela ficar com raiva da gente, eu juro que dou nela!”, pensei.
    Eu ainda não sabia como as mulheres são vingativas, como são capazes de nutrir uma pela outra um ódio mortal, mas ali naquele dia comecei a descobrir isso. Aliás, daquele momento em diante a frágil harmonia desfez-se de vez e tornou a convivência naquela ilha ainda mais difícil e complicado do que já estava sendo.
    -- Vem! Vamos nos lavar novamente – Chamou Luciana, quebrando o silêncio. – Estamos todos sujos de areia.

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