segunda-feira, 27 de abril de 2015

ADEUS À INOCÊNCIA - CAP. 57


Naquele final de noite fez-se de fato uma reunião com o intuito de selar a paz entre nós. A reunião foi iniciada por Marcela e ao final ficou decidido que não haveria mais discórdia entre as meninas, embora pude perceber no olhar de Luciana, o qual me era dirigido constantemente, que na primeira oportunidade ela romperia o acordo. Ficou decidido também que, devido a pouca possibilidade de sermos resgatados nos próximos dias (ainda não se falava abertamente no fim das buscas), faríamos uma boa melhora na cabana, tornando-a mais aconchegante a habitável, já que esta seria por um bom tempo o nosso lar. Todos, inclusive Luciana, que ainda não havia melhorado totalmente do pé, teria de ajudar. Não haveria privilégios e exceções. E por último, ficou decidido que vasculharíamos a ilha a fim de encontrar pedaços de metal para que usássemos como ferramentas ou que pudessem ser usado para fabricá-las; aliás, essa proposta partiu de Marcela em seguida a decisão de melhorar a cabana, quando indaguei como faríamos para cortar madeira para construir os alicerces, no que Marcela propôs encontrarmos pedaços de metal e derretê-lo. Lembro-me inclusive de suas palavras:
-- Claro que metais são pesados e afundam. Portanto eles não iam chegar aqui, mas algum pedaço preso à madeira ou a um pedaço de barco ou até mesmo deixado aqui por alguém. A gente já sabe que essa ilha já foi visitada. Pregos velhos e enferrujados. Devem ter alguns poi ai, enferrujados, mas mesmo assim servem.
E de fato ela estava com a razão. Foram encontrados por minha prima pouco mais de meia dúzia deles pregados numa tabua que a maré deva ter trago há alguns anos. Marcela achou um pedaço de chapa presa a um pedaço de pau, provavelmente destroços de um barco pesqueiro que naufragara ali perto. E nos dias seguintes, mais pregos, parafusos e mais um pedaço de metal medindo cerca de dez centímetros quadrados foram achados. Aliás, este último foi fruto de um golpe de sorte, uma vez que só pode ser encontrado porque Ana Paula estaca cavando a areia para fazer um castelo quando deparou com algo duro. E, ao cavar para ver do que se tratava, descobriu-se o pedaço de ferro.
Recolhemos tudo que achamos naqueles dois dias e então tornamos a nos reunir para decidir o que fazer. Eu não fazia a menor ideia de como derretê-los, pois sabia que aquele fogo brando da fogueira, a qual mantínhamos acesa desde a chegada à ilha, não serviria para nada. Luciana e Ana Paula chegaram inclusive a dizer que não seria possível derretê-los. Marcela por outro lado insistiu que se fizéssemos uma fogueira maior talvez desse certo, pois quanto maior a fogueira maior o calor. Isso inclusive gerou um princípio de discussão entre ela e Luciana, onde tive de intervir, relembrando-as da promessa feita há dois dias no sentido criar desavenças.
Os ânimos se acalmaram, mas era evidente que não por muito tempo. Luciana, possivelmente tomada pelo ciume, não suportava a outra. Uma nova briga era questão de tempo. Uma discordância ou uma palavra mais ríspida por parte de Marcela certamente levaria Luciana a iniciar um bate boca e quiça partir para a agressão, ainda mais agora que estava boa do pé e ela já conseguia andar embora se forcá-lo muito.
De fato Luciana e Ana Paula estavam com a razão. Levei ao fogo os pregos sobre a chapa de metal e deixei-os por mais de meia hora e não derreteram, mesmo colocando mais madeira a fim de aumentar o fogo e o calor. Realmente o calor aumentou, tanto que não conseguimos ficar tão próximos da fogueira como ficávamos antes, mas não deu resultado. Houve inclusive o temor de que o fogo pudesse atingir os pedaços de madeira que sustentavam a cabana. Assim, tanto os pregos quanto os dois pedaços de ferro foram deixados do lado de fora da cabana até o dia seguinte, na esperança de que encontrássemos uma utilidade para eles. Aliás, naquela noite mesmo, após aquela tentativa fracassada de derretê-los, Marcela sugeriu tentarmos novamente no dia seguinte, mas agora construindo com pedras uma espécie de fornalha e, ao invés de usarmos gravetos como vínhamos fazendo, usarmos pedaços mais grossos de árvore. A questão era que não havia como cortarmos as árvores.
-- Por que a gente não tenta amolar esse pedaço de ferro maior? É só você ir esfregando uma pedra dum lado dele que ele vai amolar. Depois a gente tenta usar ele para cortar um pedaço de árvore mais grosso – propôs Luciana. -- Eu te ajudo a cortar.
-- Podemos tentar – respondi.
E assim foi feito. Levei um dia e meio para conseguir afinar um dos lados da chapa de ferro, já que a mesma possuía cerca de um centímetro de espessura. Quando dei o serviço por terminado, jazia com as mãos machucadas e com os braços doloridos. E para compensar o meu esforço, houve uma salva de palmas, um parabéns para você e finalmente as três decidiram que eu ficaria na cabana descansando enquanto elas iriam em busca de algo para comermos, uma vez que naquele dia eu ainda não tinha ido pescar apesar de que tencionava fazê-lo mais tarde, antes de anoitecer. Aproveitei para tirar uma soneca, já que estava sozinho.
Acordei com o riso das três. Vinham alegremente em direção a cabana. Não consegui entender o que diziam, mas o fato de estarem sorrindo me tranquilizou, pois quando saíram temi que pudessem desentender-se e voltarem sem se falarem. Lembro-me inclusive de pensar: “É tão bom ver elas assim. Quem sabe Luciana pára de implicar com elas e larga até do meu pé. Ela sabe que num sinto nada por ela e que gosto mesmo é da Marcela. Talvez ela esqueça de vez aquela história de que sou seu maridinho e de que tenho que fazer um filho nela. Ela nem tentou me agarrar esses dias e nem me obrigou a meter com ela. É. Ela deve ter parado com isso. Viu que estava fazendo coisa errada, que Deus ia castigar ela. Ela disse que não acredita em Deus. Mas deve ter dito isso só da boca para fora. Como pode uma pessoa não acreditar em Deus? É até pecado pensar numa coisa dessas...”.
-- Olha o que achamos – disse minha prima, mostrando-me dois ovos, menores do que ovos de galinha. -- Ovos!
-- Onde vocês acharam isso? -- apressei em perguntar. Imediatamente levantei e fui pegá-los.
-- Lá em cima, no cume da ilha, perto de onde fomos outro dia – explicou Lucina. -- Subimos as três lá em cima. E não achamos só isso não. Olha aqui: -- estendeu o braço e aproximou a mão onde se encontrava três goiabas grandes e bem maduras. -- A gente trouxe essas aqui para você. É um presente.
Apanhei uma das goiabas e, antes de levá-la à boca, falei:
-- Mas e pra vocês?
-- A gente já comeu lá no pé mesmo. Eu comi quatro, a Marcela três e a Luciana também comeu quatro – disse minha prima. -- E tem mais lá, mas como estavam verdes, a gente resolveu deixar para ir buscar depois.
-- Vocês não deveriam ficar se enfiando nessa mata. É perigoso! -- falei.
-- Perigoso por quê? -- insistiu Luciana. -- Não vai me dizer que é por causa daquela história de que você andou ouvindo sons estranhos vindo de lá. Já te falei: mil vezes que isso é coisa da tua cabeça. Não tem nada ali. A gente andou a mata quase toda e não vimos o menor sinal de qualquer animal. Não tem pegadas, não tem nada. Portanto, não tem bicho nenhum.
-- Mas eu ouvi – insisti. -- Eu senti que tinha alguma coisa observando a gente.
-- Deve ter sido o vento que te deu essa sensação – disse Marcela, um tanto tímida e agachada num canto. -- Realmente não vimos nada.
Vencido, acabei aceitando. No entanto, não me convenci. Aliás, ninguém me convenceria do contrário, nem mesmo as mais contundentes provas. Eu podia estar errado e completamente equivocado, mas eu era tão somente um garoto de treze anos, e nessa idade ainda damos muito crédito à nossa imaginação, como se ela fosse tão somente uma extensão da realidade. Não havia amadurecido o bastante para distinguir o real do imaginário, ainda mais se levarmos em conta que, como acontece com muitas crianças, os pais, ao invés de educá-los de forma que essa separação fique bem clara, acabam por usar esta falta de discernimento para distorcer ainda mais a realidade, incutindo um medo que na maioria dos casos acaba afetando a criança para o resto da vida.
Olhei discretamente para ela e notei algo errado. “Será que ela e Luciana andaram brigando? Será que ela descobriu alguma coisa ente eu e ela? Não. A Luciana num ia contar. Pode ter sido outra coisa? Mas o quê? Perguntar. É melhor não. Quando a gente tiver sozinho eu pergunto”, pensei. Embora aquilo ficou me encucando na cabeça, provocando-me uma curiosidade difícil de ocultar, não toquei no assunto. Preferi esperar.
Comi duas goiabas apenas. Não que a outra não coubesse, eu apenas achei que poderia guardá-la para mais tarde ou para o dia seguinte. Nesses ínterim, foi levantada a questão de como cozinhar os ovos. Mais uma vez quem propôs a melhor solução foi Marcela: encher duas cascas de coco com água, colocar um ovo em cada e colocá-la na fogueira. Assim a água ferveria e cozinharia os ovos.
-- É assim mesmo que se cozinha ovos – explicou Luciana, numa das raras vezes em que concordou com Marcela.
Quando Ana Paula se levantou para buscar água para cozinhá-los, ofereci-me para acompanhá-la. As sós com minha prima, poderia indagá-la.
-- A Marcela parece estranha. Aconteceu alguma coisa entre vocês?
-- Não – respondeu Ana Paula. -- É que ela tá menstruada. E como ela num tem absorvente e aquela parte do biquíni só tampa um pouco na frente e atrás, embaixo fica sem nada e como ela tá menstruada, vai ficar escorrendo pelas pernas dela. -- explicou.
Fiquei surpreso. Em nenhum momento me passou pela cabeça que as meninas teriam de enfrentar esse problema.
-- Menstruada é quando a mulher tá naqueles dias? -- Eu já tinha aprendido alguma coisa sobre a menstruação, mas ainda sim não sabia do que se tratava com exatidão, dai a pergunta.
-- É isso mesmo!
-- E agora?
-- A Luciana disse que num dá pra fazer nada. Ela vai ter que ficar se lavando quando começar escorrer – disse Ana Paula.
-- E quanto tempo ela vai ficar assim?
-- Num sei. Uns três ou quatro dias. Ela disse que no mês passado ficou três, mas a Luciana disse que costuma ficar quatro. Então num sei.
-- Tudo isso? -- perguntei com espanto. Nisso ocorreu-me que também eu teria de conviver com aquela situação. Isso muito provavelmente alteraria a nossa rotina, uma vez que Marcela teria que se lavar muitas vezes ao dia. -- E você?
-- Eu? Ainda num fiquei. Sou nova ainda. Ainda não virei mocinha.
Enchemos os dois potes com água doce e retornamos. No trajeto de volta interroguei minha prima acerca daquela novidade. Algumas perguntas ela não soube responder; outras ela respondeu de forma insatisfatória, uma vez que, como ela mesmo afirmou, era muito nova para saber sobre essas coisas. Talvez se não estivéssemos chegando na cabana teria feito-lhe mais perguntas.
Após cozidos e deixados esfriar por alguns instantes, foram descascados e partidos ao meio, onde cada um saboreou lentamente a sua metade. Isso nos fez lembrar de nossa casa, da deliciosa comida que nossas mães preparavam. Cada um falou de seu prato preferido e de como este nos fazia falta. Um ar de saudade e tristeza se abateu todos nós, levando-nos ao mais completo silêncio; silêncio esse que só foi quebrado para dizer que deveríamos dormir para, no outro, dia tentarmos cortar algumas árvores para então construir uma casa de verdade.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A DIVISÃO DO PAÍS E O ATUAL GOVERNO

    As últimas ondas de protestos ocorridas no início do mês mostram que o país continua dividido desde as últimas eleições. De um lado estão aqueles que votaram na atual presidente e os quais procuram defendê-la com unhas e dentes independentemente dela está fazendo um bom ou mal governo. De outro estão aqueles que não votaram nela e, em grande maioria, os que votaram no outro candidato, os quais acusam a presidenta Dilma e o PT por todos os problemas pelos quais o país está passando e por isso querem a todo custo tirá-la do poder, através de um golpe militar ou de um impeachment.
    Mas afinal, quem está com a razão? Ambos e nenhum dos lados. Primeiro, porque cada um defende o seu ponto de vista e seus interesses, que no caso é o oposto do ponto de vista e dos interesses da outra parte; segundo, porque cada lado tem um quê de razão em seus argumentos, embora esses argumentos sejam muitas vezes fruto da falta de razão e excesso de emoção. Se por um lado o governo é legítimo, não havendo (ainda) razão para um impeachment, por outro é preciso reconhecer que os inúmeros problemas que vêm afetando o Brasil é, em grande parte, responsabilidade do atual governo, o qual não fez o necessário para evitá-los. A crise de econômica, a falta de credibilidade do país e os altos índices de inflação poderiam ter sidos evitados se as medidas necessárias tivessem sido tomadas na dose certa e na hora certa, o que não ocorreu. Por outro lado, é preciso reconhecer que a corrupção não é culpa do atual governo. Por mais que alguém afirme o contrário, tem-se de admitir que a corrupção está enraizada na sociedade brasileira há mais de 100 anos. E o mais grave: não só nos órgãos da administração pública como em todo lugar, das grandes corporações às pequenas empresas, embora isso raramente apareça nos meios de comunicação.
    Nunca é bom lembrar que qualquer ato que resulta em vantagem é corrupção, por menor que seja. E uma grande maioria das pessoas que tem a oportunidade de levar algum tipo de vantagem não pensa duas vezes, sem se dar conta que o seu ato é tão grave quanto aquele cometido por um agente público. É claro que hoje temos a percepção de que a corrupção é muito maior do que no passado, até porque é assunto diário nos meios de comunicação. E elas têm razão. Mas não tanto pelo fato de a corrupção ter aumentado assim tão significativamente e sim porque hoje é muito mais fácil identificar uma movimentação financeira ilícita, um enriquecimento incompatível com as rendas daquela pessoa, etc. E o mais importante: hoje vivemos numa democracia onde a liberdade de imprensa dá todas as garantias aos jornalistas e a imprensa como um todo para investigar e denunciar qualquer irregularidade, coisa que não era possível há 25 anos. Isso, no entanto, não exime o PT pelos atuais escândalos envolvendo o partido, um partido que até chegar ao poder era pautado na defesa da ética, uma ética que ele jogou por terra.
    Apesar de tudo isso, exigir o impeachment da presidenta Dilma não se justifica. Aliás, nem há base jurídica para isso, pois mesmo que houvesse um envolvimento dela, isso ocorreu na administração passada. De mais a mais, isso só tende a agravar a instabilidade política, provocando uma crise econômica ainda maior que a atual e gerando um custo muito alto ao país, o que consequentemente penalizá todos nós, porque uma crise não afeta o “Brasil” e sim todos os brasileiros.
    Por isso, eu pergunto aos integrantes dos dois grupos: O que é mais importante? O seu voto, o seu candidato, o seu partido e suas convicções políticas ou o Brasil? Independentemente de quem tenha sido o meu e o seu candidato, temos de admitir: o atual governo não é fruto de um golpe militar ou de uma fraude eleitoral. E até que provem o contrário, foi eleito democraticamente pela maioria dos eleitores. Portanto, como cidadãos honestos e defensores das leis, devemos respeitar a vontade da maioria, gostemos ou não disso; mas não passivamente. Todos nós, sem exceção, devemos exigir que o governo, pertença ele a corrente que pertencer, governe para todos, fazendo o melhor para todos nós; que crie mecanismos e combata incansavelmente toda a forma de ato ilícito praticados por agentes públicos, punindo os culpados. Talvez o maior problema do Brasil seja justamente a impunidade e não  quem esteja no poder.