terça-feira, 13 de outubro de 2009

A MENINA DO ÔNIBUS - PREFÁCIO

Foi muito dolorosa a decisão de contar nossa história, tão dolorosa quanto arrancar uma flecha atravessada ao peito puxando-a lentamente, milímetro por milímetro até até que saísse toda deixando um imenso vácuo. E se não fosse por Ana Carla e por tudo que nos aconteceu eu jamais teria escrito uma única página, uma mísera linha; pois nada me dói tanto, nada me faz converter a dor em lágrimas, lágrimas que ao percorrerem o longo trecho se perdem no silêncio de meus trêmulos lábios deixando um rastro feito um rio de larvas, quanto as lembranças dos momentos que compartilhamos. Foi como se houvéssemos vividos naqueles poucos meses uma vida inteira. Aliás, nunca experimentei a vida nos seus mais variados e intensos extremos quanto naquelas poucas semanas entre o final de 1999 e início de 2000. E mesmo que a vida me fosse eterna, ainda sim aquele período ficará eternamente gravado em minhas lembranças. Lembranças essas a invadir-me amiúde, levando-me quase sempre ao desespero feito aquele que, após cometer um crime, arrepende-se profundamente de seu ato, tornando a lembrança do crime uma tortura sem fim, mais talvez que aquela sofrida por Raskolnikov. Foi como disse a Ana Carla certa vez: “Nem que passe a eternidade, vou me esquecer desses momentos, minha florzinha”. Pois é a mais pura verdade! Jamais vou conhecer alguém como ela e amá-lo quanto a amei, um amor infinitamente maior do que aquele que cheguei a sentir por Luciana. Ana Carla foi única, foi como atirar os olhos a um imenso roseiral, onde milhares de rosas estão a se desabrochar, e bem lá no fundo, onde os olhos já não alcançam mais, deparar com a rosa pela qual seria capaz de dedicar toda a atenção, agir como se naquele interminável jardim só ela existisse, como se todas as outras houvessem murchado e perdido a beleza, tornado-se opacas e sem valor.
A minha vida pode ser resumida entre o antes e o depois de Ana Carla. Tudo que vivemos, descobrimos, amamos e sofremos vai ficar registrado para sempre na minha memória e nessas páginas que você, querido leitor, terá a oportunidade de dividir comigo a partir de agora.
Talvez você esteja se perguntando por que tomei a iniciativa de contar nossa história. Talvez você até se pergunte por que não guardo somente para mim detalhes tão íntimos de nosso relacionamento, detalhes que vão me expôr, provocar indignação, ódio e revolta; pois o ser humano é um animal esquisito: não perdoa o semelhante não por seus atos condenáveis mas por tê-los deixado vir à publico, pois atos condenáveis não há quem não os tenha cometido. Respondo-te que estou fazendo isso como forma de homenagear a minha Ana Carla, aquela menina que viveu intensamente um amor proibido, experimentou coisas que muitas mulheres jamais experimentarão, embora tenham uma vida inteira para isso. Ao fazer esse relato, também é uma forma de manter vivo esses momentos que nos custaram tão caros, que de uma forma ou de outra marcou profundamente a vida de tantas pessoas.
Contar a nossa história porém só me foi possível por causa de um detalhe: Ana Carla escreveu um diário. Aliás, um longo e minucioso relato de nosso relacionamento. Eu jamais poderia imaginar que ela andava a escrevê-lo. Em nenhum momento, deixou-me escapar que narrava detalhes de nossos encontros. Confesso que fiquei extremamente surpreso quando este veio parar em minhas mãos. A princípio, não quis acreditar; mas, após deparar com sua letra naquele caderno não tive mais dúvidas.
Como este veio cair-me nas mãos? É algo que talvez o leitor esteja se perguntando. Pois não vou deixá-lo em suspense, pelo menos quanto a isso.
Fiquei surpreso quando recebi um telefonema, poucos dias depois de sair do hospital, de um garoto que se dizia irmão de Ana Carla. Fiquei surpreso, pois onde conseguira o meu telefone? Devia tê-lo perguntado, pois essa curiosidade de vez em vez fica martelando-me no cérebro. Ele declarava ter em mãos algo que pertencera à irmã e o qual gostaria de me entregar. Combinamos o local da entrega, contudo quem apareceu foi uma menina, uma colega de classe do irmão de Ana Carla. Quem eu esperava mandou dizer que não tinha raiva de mim, mas não queria me ver pessoalmente.
Após ler aquele caderno de aproximadamente duzentas folhas de forma voraz e incansável por longas horas, pude constatar muita coisa interessante, coisas que jaziam esquecidas em algum recanto de meu cérebro. Na medida do possível Ana Carla se manteve fiel aos fatos. Claro que se trata de um texto sem muito cuidado embora bem escrito, com alguns erros de português, o que é perdoável para uma menina de quatorze anos. Muitas vezes, por falta de vocabulário ou conhecimento, Ana Carla não soube se expressar corretamente; noutras houve uma ligeira distorção dos fatos, o que também é compreensível. Seria querer demais que uma menina de sua idade, sem experiência com relação ao sexo, soubesse falar e emitir juízos acerca do ato sexual.
Entretanto, tratava-se da prova mais autêntica de suas impressões, de suas experiências e de como os nossos atos a afetavam. Ana Carla narrou com detalhes alguns dos momentos que passamos juntos e expôs suas impressões em determinadas passagens. Tratar-se inegavelmente de um texto produzido por uma alma sensível, capaz de captar nuances que eu e quase totalidade dos mortais não seriam capazes sob as mesmas condições. Aliás, ao fazer essa narrativa, tenho receio – embora tenha todo o tempo do mundo para revisá-la e corrigi-la – de que esta não fique a altura de seu diário.
O que causou-me espanto num segundo momento foi o risco que corremos com a possibilidade desse diário ter caído em mãos erradas. Havíamos combinado que não escreveríamos nada um ao outro para que o nosso relacionamento não viesse à tona, pois se seus pais soubessem que a filha envolvera-se com um homem cuja idade era o dobro da sua, mandar-me-iam prender por corrupção de menores, atentado ao pudor ou algo parecido.
O que posso dizer é que se não fosse seu diário, eu não teria forças para contar nossa história. Quis fazer isso não só para dar a minha versão dos fatos, como também para mostrar que Ana Carla não mentiu em nenhum momento, nem mesmo naqueles em que parece estar se fantasiando.
Intercalar minha narrativa com o diário foi também a forma que encontrei para preencher as lacunas deixadas pelo mesmo; pois Ana Carla começou a escrevê-lo no mesmo dia em que a presenteei com a pulseira de ouro. E não havia como ela saber o que realmente se passou antes de começarmos a nos encontrar, assim como os fatos ocorridos no período em que estava com os pais na capital capixaba, fatos estes determinantes para o fim trágico do nosso relacionamento. Isso só eu poderia dizer; aliás, como também os fatos acontecidos em Ubatuba, uma vez que nada consta em seu diário, até porque não poderia mesmo conter. Ela, talvez temendo que eu o descobrisse e lhe pedisse para destruí-lo, não o levou consigo.
Antes de inciar a narrativa, quero apenas alertar o leitor que não estou preocupado com o julgamento que este fará de mim. Em nenhum momento deixei de omitir, mudar ou tornar menos chocantes fatos verdadeiros. Até porque cada pessoa julga o outro de acordo com a sua moral, e o que para um pode ser motivo de rubor para outro pode ser perfeitamente normal. Assim, a verdade pelo menos satisfará a todos.

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