Houve um ar de constrangimento ao ficar
na presença de Marcela durante o dia. Talvez tenha sido por isso que
procurei, assim que degustamos as bananas mais maduras, manter-me o
mais longe possível dela, como se sua presença me remetesse a algo
que eu procurava a todo custo esquecer. E quando nossos olhos
casualmente se cruzavam, o que era inevitável, desviavam-se
imediatamente seguidos de um rubor em nossas faces.
Eu não sei o que se passava na cabeça
dela naqueles instantes; na minha porém vinha a lembrança não só
do ocorrido mais cedo como também do episódio no segundo dia
naquela ilha, quando a beijei pela primeira vez. E então eu me
sentia inda mais tímido e envergonhado, como se cometera um crime
horrendo e o qual poderia me fechar as portas do céu. O
arrependimento em meu peito não só em relação ao que Marcela e as
outras meninas poderiam pensar a meu respeito, embora isso também
contasse muito, mas principalmente pelo temor a Deus, Dele estar
vendo tudo que eu fazia aqui na terra como um ser impiedoso que
castiga severamente o menor deslize de suas ovelhas. E quando eu
estivesse diante Dele e Ele enumerasse todos os meus atos aqui na
terra? Como eu me justificaria a fim de conseguir a sua absolvição
para entrar no reino do céu? Não, eu não queria perecer no inferno
e ser torturado para todo o sempre pelo diabo. Se havia uma coisa que
eu temia era o inferno. Só a possibilidade de minha alma queimar
eternamente me causava pavor; pois eu ouvia as piores e mais
terríveis histórias sobre o inferno não só na igreja, quando
íamos à missa, como também em casa e na escola desde pequeno,
embora com o passar dos anos passei a por em dúvida a veracidade
tanto dessas narrativas quanto a própria fé em Deus a ponto de hoje
ter perdido completamente a fé. Mas depois do acidente com a Lancha,
da morte do meu tio e durante boa parte de nossa estada naquela ilha,
minha fé manteve-se inabalável.
Só que eu não queria ficar pensando no
ocorrido para não pensar nos possíveis castigos, já que uma coisa
levava a outra. E isso só seria possível se eu me afastasse e me
entretece com alguma coisa. E como havia planejado antes, fui tentar
pescar com uma vara pontiaguda para fisgar os peixes.
A minha primeira dificuldade foi entrar
na mata para apanhar uma vara. Desde o episódio em que parecia ter
visto alguma coisa se aproximar, na noite em que Luciana me
surpreendeu masturbando-se e depois, com sua curiosidade e falta de
vergonha, me fez ter um orgasmo, eu não tivera coragem de ir tão
longe. Só de pensar que de qualquer ponto escuro da floresta poderia
surgir terrível e monstruoso e me devorar fazia-me gelar e tremer
dos pés à cabeça. Mas a necessidade muitas vezes é o que nos
obrigar a correr riscos imensos. E perdidos naquela ilha, se não nos
arriscássemos de vez em quando, não sobreviveríamos. Talvez por
isso tenha criado um pouco de coragem e adentrado a mata para
encontrar uma vara fina comprida e resistente para pescar.
Tive um pouco de trabalho para fazer-lhe
uma ponta. A nossa “faca”, que já não prestava muita coisa,
estava mais cega do que nunca. Aliás, quebrara numa das extremidades
onde mais cortava. Contudo, depois de muito resistir pacientemente,
consegui deixar uma das pontas fina o bastante para penetrar nos
peixes. E isso só foi possível porque me ocorreu de esfregar a
ponta da vara até que afinasse numa grande pedra
Agora só faltava treinar a pontaria. E
eu teria muito que treinar, pois desde pequeno a minha pontaria
sempre foi péssima. Contudo, estava obstinado a pegar um peixe.
Dir-se-ia questão de honra, embora pensasse nisso para evitar de
pensar em Marcela. E quando a gente quer, a gente consegue, basta ter
força de vontade. Sempre ouvia isso de meus pais. E eles estavam com
a razão. E por mais que eu fosse um garoto, era crescido o
suficiente para saber disso. Além do mais, eu tinha todo o tempo do
mundo. Poderia insistir, insistir o quanto quisesse. Poderia levar
alguns minutos, meia hora, uma hora ou até mesmo o dia inteiro, mas
em algum momento fisgaria um peixe.
E foi isso que não me fez desistir,
mesmo quando o sol mudou de lado e eu já estava prestes a deixar
para o outro dia.
De repente vi um dos grandes nadando
tranquilamente entre duas pedras. Então eu olhei fixamente para ele,
como se tentasse hipnotizá-lo. E por alguns instantes, me mantive
inerte, apenas com os movimentos de meus olhos e minha respiração.
A vara jazia em minha mão erguida, pronta para ser lançada. Mas eu
queria esperar o momento certo – aquele instante em que você tem a
certeza absoluta de que dessa vez não vai errar.
Esperei-o ficar numa posição em que
fosse fácil calcular onde a lança o atravessaria. E assim, medindo
bem com os olhos, coloquei toda a força no braço e atirei-a. Esta
atravessou o peixe bem no meio, pouco abaixo da cabeça e enroscou-se
nas pedras.
O pobre infeliz começou a se debater,
querendo nadar para frente, mas a lança mal se movia. E mais que de
pressa, abaixei e segurei-a pela outra ponta e a enterrei ainda mais
para não deixar nenhuma possibilidade de escapar. E assim, como
muito cuidado, desprendi-a das pedras e a ergui com peixe ainda se
debatendo.
Ah, que sensação mais deleitosa! Foi
como se, após uma luta feroz pela vida contra um inimigo bem mais
poderoso, eu o tivesse finalmente vencido. Não sei nem mesmo
explicar o que senti naquele momento. Nem mesmo hoje, depois de
muitos anos, ainda não encontro palavras capazes de descrever com
exatidão o que senti. Só posso dizer que me senti o homem mais
feliz do mundo.
Qual foi a minha primeira reação ao
apanhar a vara e erguê-la com o peixe sacolejando, desesperado para
se soltar? Embora o mais lógico fosse retirá-lo do espeto e tentar
fisgar outro, não foi isso que se passou pela minha cabeça. Aliás,
nem sei se ouve tempo para pensar, pois simplesmente sai correndo com
o espeto na mão em direção à cabana para mostrar as meninas o
resultado da minha pescaria.
Encontrei a Marcela e Ana Paula sentadas
lado a lado no chão, com os joelhos dobrados e os braços em volta.
Ana Paula estava com os olhos vermelhos, dando a impressão de ter
chorado mais uma vez.
Isso conteve meu estado eufórico,
todavia não o bastante para dizer:
-- Olha o que eu peguei. – Aproximei a
ponta onde o peixe ainda se agonizava sem forças.
-- Nossa! Que peixe grande! –
espantou-se Marcela.
-- Agora a gente não precisa mais ficar
comendo frutas o tempo todo – falei.
Ana Paula apenas ergueu a cabeça e
olhou com ar de indiferença, como se isso não representasse melhora
na nossa alimentação; em seguida tornou a abaixar a cabeça.
“Será o que aconteceu dessa vez?”,
indaguei-me em pensamentos, “Será que ela e a Luciana já brigaram
de novo?”.
-- O que aconteceu? – perguntei para
Marcela.
-- É por causa do pai dela.
Então a lembrança da triste morte do
tio Jamil me veio à memória. E por algum momento a cena do barco
virando e todos nós caindo no mar se formou em minha cabeça.
Esqueci o fruto da pescaria por alguns instantes. Olhei para Ana
Paula e para Marcela e pude ver o desespero em seus rostos quando nos
vimos as sós naquela imensidão de mar. E eu pude rever o meu
próprio desespero ao gritar pelo tio e não obter respostas.
Entreguei a vara com peixe para Marcela
e sentei ao lado de Ana Paula.
-- Não fique assim, prima – pedi,
tomando-a nos braços e afagando seus cabelos.
Ela apoiou a cabeça em meu peito e
tornou a chorar compulsivamente.
O pranto e a dor de minha prima acabaram
por me comover; pois não era simplesmente um choro como a maioria
dos que nos ocorre principalmente na infância. E por mais que
tentasse ser forte, não pude deixar de verter lágrimas; pois também
eu sentia um forte aperto no peito, consciente de que nunca mais
veria o tio Jamil, de que sua família ao saber de sua morte também
entrariam em desespero.
Marcela aproximou-se e também nos
abraçou. Embora não tivesse nenhum parentesco com nossa família,
também ela demonstrava estar consternada com a morte de meu tio.
E ficamos assim por algum tempo.
Entretanto, depois da dor tornar menos intensa e Ana Paula finalmente
parar de chorar, Marcela se levantou e foi mexer na fogueira.
Aproveitei o momento para levar a mão ao queixo de minha prima,
levantar sua cabeça e dizer-lhe enquanto olhava fixamente em seus
chorosos olhos:
-- Não fique assim. Tudo vai ficar bem.
Ana Paula meneou a cabeça e tentou
esboçar um sorriso.
Então lhe levei a mão ao rosto e
enxugue-lhe as lágrimas. Seus olhos denotavam muita dor, feitos os
olhos de uma criança sozinha, órfã, perdida no mundo, a qual só o
tempo é capaz de aliviá-la. Era como se a minha presença não
fizesse muita diferença, não confortasse sua dor.
-- E aí? Vamos preparar aquele peixe
para o almoço? – perguntei, tentando reanimá-la? Ela meneou a
cabeça afirmativamente. – Então vamos lá.
-- Como é que vamos fazer para limpar
ele? – quis saber Marcela.
-- Sei lá! – falei. – Nunca limpei
um peixe.
-- Eu sei mais ou menos. Já ajudei a
minha mãe a fazer isso algumas vezes – adiantou-se Ana Paula.
“Ótimo! Assim ela vai se entreter e
não vai ficar pensando na morte do pai. E a Luciana? Por onde
anda?”, pensei. Em seguida perguntei para a Marcela:
-- Cadê a Luciana?
-- Ah, não sei não. Disse que ia andar
por aí. Foi naquela direção. – Apontou a frente, para o lado
onde costumávamos apanhar frutas.
-- Vou atrás dela e contar que peguei
um peixe – falei, saindo da cabana e principiando a correr.
Nenhum comentário:
Postar um comentário