segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A MENINA DO ÔNIBUS - Capítulo V - Parte 4

Na quinta-feira, enquanto "o espírito ia acordando vagarosamente para um trêmulo conhecimento da manhã", despertei. E então tomei a resolução de executar meu plano nos próximos cinco dias. Não podia esperar mais, e nem havia o porquê. Ana Carla tornara-se uma menina incapaz de me dizer não, foi o que me deu essa certeza. Sua declaração de amor, a maneira e as palavras usadas para expressar seus sentimentos só me reforçaram a convicção de que ela estava plenamente em meu poder. Podia-se lhe perceber a disposição para fazer qualquer coisa que eu pedisse, desde que esse sacrifício não fosse maior do que seu amor por mim. Pois se tem uma coisa que jamais podemos exigir de uma pessoa é que ela faça uma loucura maior do que seu amor. Qualquer pessoa, principalmente as mulheres, são capazes até mesmo de sacrificar a própria vida por amor sem saber que na mais das vezes o objeto de seu amor não vale um puto furado.
Não havia mais o que esperar. E esperar só seria uma perda de tempo, um risco desnecessário, pois quanto mais tempo se dá a uma pessoa para avaliar suas escolhas, maiores são as chances de que venha a se arrepender. Além do mais, era-me difícil suportar a vontade de vê-la inteiramente despida me presenteando com a sua virgindade (essa imagem ocupava diariamente meus pensamentos desde que a conheci. Aliás sua imagem substituiu quase por completo a imagem de outras mulheres – muitas delas com as quais havia saído no passado, como Daniela, cujos traços de pudor por causa de sua educação conservadora me excitava, e mais recente Ana Paula – em meus devaneios, os quais, de vez em quando, levavam-me a masturbação). Tudo que havia feito, tudo que arriscara até então era exclusivamente com esse único objetivo. E finalmente parecia que ele havia chegado.
Muitas vezes ao longo de nossas vidas, ao corrermos atrás de algo, as coisas dão tão certas que temos a impressão de que os deuses conspiram a nosso favor. Isso já acontecera comigo em outras ocasiões e agora parecia acontecer novamente, uma vez que nada corria tão simetricamente aos meus planos quanto Ana Carla. Dir-se-ia estar ela seguindo um roteiro, feito um ator de teatro durante uma encenação.
Naquela mesma manhã, durante o desjejum, minha mãe comunicou-me que ela e meu pai precisavam ir à capital paulista no domingo visitar tia Luzia, cujo câncer em estágio avançado, levara-a definitivamente para o hospital. Ela me convidou para ir, mas inventei uma desculpa e disse que arrumaria uma folga no meio da semana seguinte e daria um pulo à São Paulo para visitá-la.
-- Mas nós vamos chegar tarde, meu filho. Você vai ficar sozinho em casa?
-- Ora, mãe? Já não sou mais criança, né? Sou um homem de quase trinta anos -- expliquei.
-- Eu sei meu filho. Mas a gente se preocupa com você.
-- Pode ficar tranquila, mãe; eu sei me virar muito bem.
Ela ficou convencida e mudou de assunto.
Ah, querido leitor, como dizer o que se passou pela minha cabeça logo após essa conversa! Era tudo que eu precisava. Dir-se-ia da sorte grande batendo-me à porta. E era preciso agarrá-la como um enfermo se agarra à vida. Se meus pais não estariam em casa, por que não traze-la para cá? “Aqui poderei usar de todos os artifícios para seduzi-la. Tudo fica mais fácil. Ela não vai me escapar!”, foi o que pensei quase intuitivamente.
Mas ainda sim havia um problema. Será que ela viria à minha casa por livre e espontânea vontade? Ou seria preciso usar de algum artifício para convencê-la? Se fosse preciso, o que eu poderia dizer ou fazer para quebrar-lhe a resistência? Embora não acreditasse numa oposição por parte dela, como não encontrei em outros casos, ainda sim havia esse risco. Afinal não se pode descartar nenhuma possibilidade, pois quando esta existe deve-se levá-la em consideração. Ah, tinha de planejar cada pequeno passo para nada dar errado. “O momento está tão próximo! Nada pode dar errado agora, senão tudo estará perdido”, disse com meus botões ao entrar no carro para ir ao trabalho.
Ana Carla telefonou-me da escola uma hora e meia depois. Disse-me que estava no intervalo. Ficamos conversando por mais de dez minutos. Pensei em lhe fazer o convite, mas cheguei a conclusão de que assim não poderia ver sua reação e nem avaliar com precisão seu grau de receptividade. E se ela criasse algum empecilho? Eu não estaria lá para demover-lhe os temores. Não, não. Teria de lhe dar essa notícia pessoalmente.
Queria encontrá-la para comunicar-lhe a boa nova, mas disse-me ao telefone não ter como sair de casa, pois seu pai, de folga do trabalho, estaria em casa. Ainda acrescentou que se saísse, teria de dar-lhe muitas explicações, pois seu pai é daqueles que acham que mulher é para ficar em casa, cuidando do lar e dos filhos. Não quis insistir para não criar desavenças em sua casa. Era melhor eu ter um pouco mais de paciência e só lhe dar a notícia no dia seguinte. Ser-me-ia angustiante passar a noite com uma vontade incontrolável de contar-lhe ter encontrado um jeito de ficarmos à sós, mais à vontade, sem o temor de sermos surpreendidos (seriam estas as palavras para convencê-la), mas era ainda mais angustiante dormir na incerteza de que ela aceitaria, pois o desejo de dar uma notícia, por mais intenso e importante que esta possa ser, nunca é maior do que a incerteza de como o outro vai reagir. Não é tanto o peso da notícia que muitas vezes nos levam ao desespero, mas a incerteza de como o outro a receberá.
Antes de prosseguir porém gostaria que o leitor lesse com atenção os apontamentos de Ana Carla em seu diário. Se até então ainda não havia deixado claro sinais de mudança de comportamento e pensamento, agora, pela primeira vez, começou a perceber efeitos desse relacionamento proibido, relacionamento que tinha tudo para nem se ter iniciado, embora chegamos onde chegamos por culpa exclusivamente minha. Talvez se ela não estivesse tomada pela cegueira da paixão, cegueira essa que nos impede de enxergar tudo aquilo que de alguma forma pode pôr em cheque tal sentimento, teria desistido a tempo. Mas como disse Stendhal: "na primeira juventude, o amor é como um rio imenso que arrasta tudo em seu curso e ao qual sabemos que é impossível resistir". Acho inclusive que a paixão é o mais perigoso dos males, pois quem é acometido por ele não só não admite a doença como recusa qualquer tratamento.

Quinta-feira, 2 de dezembro.

Hoje eu liguei para ele da escola e disse que não ia dar para nos encontrarmos. Meu pai estava de folga e de tarde ia sair com a gente. Ele disse que não tinha problema, pois no fim de semana a gente desconta o atraso.
Quando voltei para casa, fui direto para o meu quarto. Não me diverti muito hoje. Já acordei meio irritada e passei o dia assim. Desde ontem já estava desse jeito. Acordei com meus peitos doloridos. No começo eu achei que fosse por causa das carícias que ele me fez, mas no final do dia a minha menstruação veio. Aí eu percebi que eles estavam assim porque eu ia ficar menstruada. Pior que agora vou ficar uns três dias assim. Quando a gente se encontrar, não vou deixar ele chegar a mão muito perto. Não quero que ele saiba que estou naqueles dias.
Ah, meu querido diário! Eu não sabia que amar era tão complicado assim. Está apaixonada é a coisa mais deliciosa que existe, mas quando a gente está com o nosso amor. Quando estamos longe dele, ou quando a gente quer ficar com ele e não dá é muito ruim. A gente fica desesperada, sabia? O pior que eu não posso dizer para ninguém o que está se passando aqui dentro desse coração. Só para você. Às vezes, quando quero ver ou falar com ele e não consigo, fico triste, angustiada e um pouco irritada também. Me dá vontade de sair correndo e ir atrás dele. Dá vontade de sair pela rua gritando para todo mundo ouvir que eu amo ele, que eu não consigo viver sem ele, que não me importo que ele seja bem mais velho.
Minha vida mudou completamente. Sabia? Até minhas amigas, minhas colegas de infância, como a Marcela e a Fernanda, já não tenho mais aquela vontade de estar sempre com elas. Às vezes, elas me chamam para ir à casa delas, mas não é a mesma coisa de antes. Parece que elas ficaram infantis e sem graça alguma. Será que sou eu quem estou mudando?
Será que meus pais perceberam alguma mudança em mim? Meu Deus! E se eles começarem a desconfiar de alguma coisa? Estou perdida.

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