terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

ADEUS À INOCÊNCIA - CAP. 01

A tempestade parecia chegar. O vento soprava forte a estibordo e as nuvens deixavam o céu com aquela cor de chumbo, como se o dia fosse transformar-se em noite. As ondas cresciam pouco a pouco e o mar tornava-se cada vez mais agitado, inquieto feito um animal ao prever o perigo. De tempos em tempos um raio cortava o céu deixando para trás um estrondo assustador. A lancha na qual estávamos balançava e inclinava demasiadamente ora para um lado ora para outro ao se chocar contra uma onda obrigando-nos a segurar firme.
Eu e as meninas estávamos cada vez mais assustados, essa era a verdade. E nosso medo crescia ainda mais a medida que o estrondo chegava aos nossos ouvidos. Não era a primeira vez a ser apanhado por uma tempestade no mar. Eu já havia passado por isso uma ou duas vezes com meu pai num de seus barcos de pesca, mas mesmo assim isso não me confortava em nada, pois diferentemente de outras vezes agora encontrávamos longe da costa. Aliás, nunca vira o tempo mudar de forma tão rápida.
Quando saímos mais cedo para dar uma volta de barco, o dia estava bonito, ensolarado, e pensávamos que teríamos sol o dia todo. Talvez por isso, por acreditar que o tempo não mudaria, meu tio tenha adentrado tão profundamente em alto mar. Não que a lancha não fosse apropriada para ir tão longe. Quanto a isso não havia dúvida. O problema era que não estávamos preparados para tanto. Além de que meu tio Jamil não era experiente o bastante para navegação em situações adversas, como acontecia com meu pai – um marinheiro nato.
Era a primeira vez que ele se dispunha a sair de barco sem alguém com mais experiência a nos acompanhar. Foi uma imprudência por parte dele, contudo, só se ofereceu a sair ás sós com a gente porque nossa intenção era tão somente dar uma volta, navegando pela costa, como ouvir meu pai recomendar por mais de uma vez.
Éramos cinco pessoas na lancha. Outro erro: pois a lancha só tinha capacidade para quatro pessoas. Nesse ponto, a culpa foi toda minha. Eu não devia ter convidado as três meninas para vir conosco. Todavia, como quase todo adolescente, eu queria fazer bonito e aparecer. Não é assim que os jovens fazem? Aliás, não perdem uma oportunidade chamar a atenção. Dessa forma, convidei uma pessoa a mais. Contudo, meu tio deveria ter se oposto a transportar mais gente do que o permitido, mas também não fez nenhuma objeção. Não sei se foi para me agradar ou se foi porque sua filha era um das passageiras, a qual tornava uma séria candidata a exclusão. Talvez ele não quis se arriscar e ficar numa situação embaraçosa.
Quanto à lancha não era nova. Possuía alguns anos de uso, embora eu não soubesse quantos. Sei que o tio Jamil a adquirira num leilão há pouco mais de um ano. Antes disso, ele tivera uma menor ainda, a qual vendeu para pagar esta. A lancha porém estava em bom estado e até onde sei passara por uma revisão tempos atras. Não havia nada que a impedia de navegar. Meu tio gostava tanto da lancha, principalmente do nome, que só se referia a ela pelo nome. Jamais alguém o viu chamar sua “LIBERDADE” de lancha ou barco, tamanho apego. Vez ou outra alguém o inquiria acerca de quem era essa tal “LIBERDADE”, talvez pensando tratar-se de uma mulher.
A turbulência estava ficando cada vez mais pior. Via-se que meu tio também estava apreensivo e preocupado, pois diferentemente do que sempre fora, mantinha-se calado e agitado. Ele tentava manter o controle da situação, mas a medida que as ondas atiravam o barco para lá e para cá, obrigando-nos a segurar firme, via-se uma falta de indecisão, um não saber o que fazer. Possivelmente porque nem meu pai e nem o Paulo Roberto, o marinheiro contratado pelo meu tio, estavam conosco. Ele tentava a todo custo nos trazer à costa, mas nada de avistarmos a cidade, pois parecia que estávamos mais longe da costa do que meu tio supunha. Não tenho certeza, mas algo me dizia que aquilo não ia terminar bem.
Súbito o motor parou.
-- Tem alguma coisa errada aqui – disse ele, como se pensasse alto.
-- O que foi pai? – perguntou Ana Paula, a mais jovem e nós. Tratava-se uma menina baixinha, de doze anos, de cor parda, cabelos pretos e olhos um pouco puxados como se fosse descendente de orientais. A menina era quase uma cópia perfeita da mãe, exceto pelos olhos que lembravam um pouco o pai.
-- O medidor diz que ainda temos bastante combustível.
-- O que vamos fazer agora? – arrisquei a perguntar.
-- Não sei. Fiquem calmos que vou dar uma olhada.
Tentou de todas as formas fazer o motor pegar. Nada porém surtiu efeito. A verdade é que estávamos à deriva em plena tempestade.
O pior ainda estava por vir. A tempestade desabou e definitivamente o dia tornou-se noite, dando a impressão de estarmos no meio do nada. O vento e as ondas, mais intensas, atirava-nos para tudo enquanto era lado ao mesmo tempo que invadiam a lancha, muitas vezes desabando por cima de nós. E quanto mais o tempo passava, mais desesperado ficávamos. As meninas, histéricas (não sei porque as mulheres têm o dom de ficar histéricas diante do perigo), começaram a chorar e o tio Jamil teve que gritar e ameaçá-las com uns tabefes para que se contivessem. Eu não chorara, não porque não estava com medo, mas por vergonha mesmo. Não queria dar a impressão de covarde, medroso e fracote, pois certamente era isso que pensariam de mim.
A bússola não marcava mais a posição em que estávamos ou era meu tio quem não conseguia mais interpretá-la. O rádio estava mudo, quanto a isso não havia dúvida. Eu via o desespero nos olhos dele. Talvez ele tivesse mais consciência do que nós de que a coisa estava preta, de que estávamos à deriva. A verdade era que não sabíamos onde estávamos, se longe ou perto da costa. De forma que só nos restava esperar a tempestade passar e então pensar no que fazer.
Não sabia há quanto tempo jazíamos à deriva. Poderia ter se passado meia hora, uma ou até bem mais do que isso. A tempestade não dava trégua e nem sinal de que as coisas ficariam melhores. E com o aproximar da noite parecia escurecer mais e mais. Não sei se era reflexo de nosso desespero, ou se realmente a tempestade tornara-se pior. Por questão de segurança, meu tio havia nos pedido para colocarmos o salva-vidas.
Uma onda gigante começou a se formar a poucos metros a nossa frente. Já havíamos enfrentados outras, mas esta parecia ser absurdamente grande. “Só faltava essa agora! É o nosso fim!”, pensei.
Confesso nunca ter sentido tanto medo quanto naqueles segundos. Enquanto ela se aproximava feito um monstro crescendo em nossa frente, pronto a nos engolir, eu só pensava em minha mãe e naqueles últimos instantes. Era como um carrasco erguendo as mãos para desce-la pela derradeira vez. Eu sentia medo, um medo indizível, mas, ao mesmo tempo, tentava pensar em algum momento especial de minha vida para morrer tendo-o como minha última lembrança. Sim, eu pensava que morreríamos. As meninas gritavam e choravam, mas eu não prestava atenção a isso.
De repente a onda atingiu a proa do barco e nos atirou longe. Não sei quanto tempo fiquei submerso até voltar a tona. Ainda me lembro que, ao voltar a superfície, encontrei tão somente destroços da lancha. Alguns metros adiante ouvi alguém gritar. Era Marcela, amiga de minha prima. Acabara de completar quatorze anos no último domingo. Era a menina por quem estava apaixonado. Na verdade, ela ainda não sabia de meus sentimentos, mas sua beleza me fascinava desde a primeira vez em que a vi há uns seis meses atrás na casa de meu tio.
Quando ouvi seus gritos, respondi de imediato e nadei em sua direção. Instantes depois, ouvi os gritos de Ana Paula. Naquele momento não me passou pela cabeça procurar por meu tio Jamil e pela Luciana. Queria tão somente aproximar-me da Marcela para saber se ela estava bem. E só me dei conta de procurar pelos outros quando Ana Paula chamou pelo pai.
Tudo se passou em pouco mais de um minuto ou dois, não mais que isso. E quando Ana Paula chamou pelo pai, a voz ao longe que ouvimos não foi a dele. Era Luciana quem perguntava onde estávamos.
Apesar do mar revolto, a muito custo, conseguimos nadar uns em direção aos outros, e assim nos mantermos vivos. Pouco tempo depois, a tempestade foi passando e as águas do mar foram se acalmando, como se a ira de Poseidon houvesse abrandado. Aliás, ainda me recordo bem de ter pensado: “Parece até que Deus só queria destruir o nosso barco”.
Tentamos encontrar meu tio, contudo nenhum sinal dele. Lembro-me de ter nadado até os destroços do barco, mas nada encontrei. Haviam grandes pedaços de madeira boiando em meio a pedaços de papel e plástico. Procuramos eu e a Luciana (ela tornara-se uma ótima nadadora depois de entrar na natação uns dois anos atrás) entre aquilo tudo algo que pudesse ser útil e nos ajudasse a sair dali, mas nada encontrei. Ocorreu-me apenas a ideia de me apoiar num dos pedaços da lancha (aliás o maior) e chamar as meninas para que fizessem o mesmo.

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